terça-feira, 2 de agosto de 2011

Insuflando adágios


Nisso de promessa é dívida os pais cumpriam tudo. Por isso Luzia, em alma e hálito, cria.

Criam, os três, venceria ela mais este seco inverno agora tão cheio de novas promessas.

Houve quem dissesse: se na casa não há sossego, em junho é que não há de haver.

Casa é exagero, por isso gostava de pensar: lar. Porque, depois de empilhar e amarrar as poucas tralhas empurrapuxadas na pequena carroça que há tempos não via o seu cavalo, vendido pra pagar despesas de ir e vir à cidade maior, doce veio a ser o desvão em que seus pais se acomodaram. Brando como as saudades do chão havido.

Fixaram-se naquela pela boca, mais tentassem iriam à Roma. Já estava bom, ali tinha doutor de tratar pulmão. O melhor da região, diziam.

De prole, por sorte, só ela; de mais os pais. Sabe Deus o que faz.

Na casa desassossegada o descanso, raro, piorava; não porque fosse mês de festejados santos, mas pela ânsia do cumprimento da promessa que finalmente lhe faria a respiração mais suave.

O grande segundo sossego seria o aumentar do serviço nos dias de feriado, quando o veículo da vinda, agora acostumado a carretos, ainda corria o município recheando-se de sobrevivência: papelão, latinha, pets, e de quebra mobílias ou utensílios que o pai, como Deus é, consertava e a mãe dispunha dando vagarosamente ao lugar ares de morada.

Mas à Luzia bastava o aroma do lar, que se o ar era pouco, nunca faltou flor emprestada de algum jardim enquanto esperava, quietinha, o retorno dos seus com provimentos, nem carinhos e sorrisos dos que sabem que a vida é boa, breve, e que o tempo não para.

A residência, improvisada, não comia dinheiro: banheiro da praça logo ali, e luz fácil de rua escondendo a da lua, tanta que nem era preciso apagar pra dormir. Já, da saúde, nem tudo vinha de graça conforme o prometido; que, vai ver, o governo também tinha lá suas dívidas e, como eles, pretendia pagar. Em dívida grande a demora é maior..., tinha que ser isso, imaginava.

No Recanto da Ponte, como nomearam o lugar tão cuidadinho ele era, cantava-se a César o que é de César. Era habitação sem trancas que, podendo ser roubada antes como depois, dava vista pra pista. Contornando aquele viaduto, rumo à rodovia, passavam lentos os prepotentes blindados. Iam reluzentes, exibindo por detrás de janelas escurecidas os seus possuídos.

Os possantes, donos daqueles fartos homens públicos enfastiados de mídia e questionadores dos interesses de todos, mal deixavam que se lhes adivinhasse pelos lábios os sabidos discursos: a ocasião faz o ladrão; a palavra é prata, o silêncio é ouro; antes fanhoso que sem nariz; ao rico não faltes, ao pobre não prometas.

Em certas épocas, esquecidos dos próprios ditos, os doutos da coisa pública prometiam, porque afinal em tempo de guerra mentira é como terra; e voto pode ser como foto, comprova mas não é a toda prova; e o que achavam feio de fato, e nunca fizeram fita, era não poder carregar o que lhes coubesse nos fartos braços. Então prometeram o que era bonito prometer, o que era tranquilo pra eleger.

Sempre a consultar seu livro predileto, raciocinava a frágil Luzia: se ela tão pequenina se ardia na queimação pulmonar, e de males muitos só o bem pode advir, também talvez eles, ou os filhos deles, se abrasassem. Nisso de ar, ela sabia, o dela e o deles era igual. Ou não?

Esperou festiva mais aquele junho de nédios santos e plenas esperanças.

Na cidade, o início, foi pena para a mãe. Veio a aprender no hospital que fogo queima oxigênio e resseca o ar. Lembrava-se bem, no primeiro junho sob o vão que agora ocupavam, tendo achado santo de pé quebrado nas andanças carroceiras, o pai quis fazer altar pra que sua ajuntada acendesse velas em honra do poder maior, quando o médico ensinou que santo de casa além de não fazer milagre não tem poder pra impedir fogo de consumir o oxigênio.

Por continuar acreditando nos santos, como em promessa ser dívida, restou-lhes aguardar o cumprir dos homens de lei: a partir de tal data nada mais seria queimado, cerne de flora, ou de fauna.

Homens eram fauna, achara graça Luzia ao encontrar essas palavras noutro livro. Agradeceu em suas orações ter aguentado chegar ao ano da promessa: seriam mais caminhões a carregar plantio, mas muito menos fumaça; que sem queimadas o fogo que arderia estaria mais nas ganâncias insatisfeitas do que nos campos. E, já que uma andorinha só não faz verão, deu de prometer alegrias também. Quando sarasse, disse à enfermeira, viesse o que viesse, nunca, mas nunquinha, nunquinha mesmo, insistiu, iria morar longe dos pais que lhe faziam a vida mais doce.

Veio a cirurgia, a alta precoce (que pobre não cobre leito com erva verde) e a recomendação médica: além dos comprimidos deixem que a menina, como o nome, pra fazer mais luz tome muito ar. Nada mais fácil de providenciar num lar descortinado por natureza.

Tristeza foi o prejuízo do catador, naquele São João de manjericão repleto de latinhas e garrafas pets que rendidas aos encantos de outros carroceiros diligentes não puderam aguardar por ele. De lucro, dos muitos cravos e crisântemos, só a beleza depositada na caixinha que a mãe pintou de branco e bordou em florinhas azuis, coroas de lágrimas secas. A urna recheada com o silenciado tesouro, ficou bonita, enfeitada que só vendo. O corpinho nem esfriava tanto era o cobertor de flores funéreas oferecidas por floristas conhecidos. Coisa de se pagar a perder de vista.

Luzia não foi chorada porque a desgraça foi grande, e mesmo não sendo bobagem quem quer chorar defuntinha pobre de dar dó?
Na tosse contínua daquela noite os pontos se esgarçaram nela como na blusinha preferida, ambas puídas no esforço de se manterem limpas. A hemorragia deu pano pra manga, tanto que sobrou para toda a mortalha, explicaram ao viandante quase amigo. A noite da partida da menina foi bonita, disse o mendigo, vocês devem ter ficado contentes, escuridão de noite iluminada...

E como o silêncio calasse raso continuou consolador: quero ter morte assim, luzinhas aos milhares, cada pé de cana-de-açúcar? uma vela..., viram que escalão de chegar aos céus?, rolos cor de chumbo grandes e largos feito uns degraus de escadaria de palácio santo, bonito mesmo!

Na urbanidade incrustada entre campos nunca ninguém descobriu quem, durante algum tempo ia de igreja em igreja (entre a cata de uma latinha e outra) soprando velas votivas (e fazendo secretamente orações pela lucidez dos homens). Coisa do demo gritavam as beatas da pacata cidade cercada de plantações de cana.

Na ousadia crescente, por fim, na noite em que juntos tentaram vencer mais do que a combustão de velas em um canavial próximo demais, um vento de trivela os conjugou em brasas. Restou do casal apenas o carvão.

Tão afeitos a certos provérbios, como foram se esquecer de mais prevenir e menos remediar, perguntaram os floristas no prejuízo.

No desvão, tempestades desmoronando aos poucos os restos do que foi lar viravam as páginas de um velho livro uivando sentenças: de afirmação? Ou, por tratar de quem era de cumprir palavra pelo fio do bigode do pai, perguntasse talvez:

— Aquilo foi sopro de Luzia sarada vindo cumprir promessa... (?)

* Este conto foi publicado no livro Contos Premiados / Vencedores do 24º Concurso Internacional de Contos Cidade de Araçatuba.

11 comentários:

  1. Li e reli na publicação do periódico. Pobre Luzia.
    A internet está meio pífia por aqui pq de veloz não tem nada. Ou melhor: tem sim!! Os netos correndo por todos os cantos (risos).
    http://musicaprincipal.blogspot.com/
    bjão
    Soraya
    (aí ó...nem posta o comentário...net doidia)

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  2. Uai, se não foi,foi o que? E foi vingança saramalígna.
    O heitor me disse: Mirtho, eu não entendi o título do texto da Cecília.
    _ qual foi ?
    - a vingança das adagas.
    Ah! se eu tivesse uma,pensei.

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  3. Endoidou Soraya? Vou privar meu blog de um comentario seu? E o prestigio??
    r*** Thank's

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  4. Hamilton, nao contei, mas deve ter alguns proverbios embutidos ai no discurso. Pra depois chegar no sentido do discurso r*** Ue, isso pode virar uma aula pro Grupo Experimental. Um desafio. Quem encontrar o maior numero de maximas ganha um livro meu! r***

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  5. Fazendo teste. Tomara que chegue.
    Tentei várias vezes.
    Vou tentar agora como anônimo.
    Rita Lavoyer

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  6. Yeiiiii!!!! Olha vc aqui, Rita!! Thank's! nem vamos precisar perturbar o Jose Marcos! r**** Bjks

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  7. Tá certo, vou levar preles. Vc sabe como eles estão participando de blogs, face, twittwer e outras ferramentas.Vou comunicá=los inclusive passando o seu texto. Como se diz: Prato feito.

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  8. Hamilton, se quiserem, podemos vavaliar o txt... Tipo workshop.

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  9. Maravilhosa abordagem sobre as "antigas inocências". Muitas Luzias ainda sobrevivem nesse mundão de meu Deus! Adorei o conto, Cecília, emoldurado com provébios interessantíssimos, tais como: "promessa é dívida" (deveria nunca deixar de ser); "mais vale prevenir do que remediar" (o esquecimento deste último pelos pais da pobre Luzia foi fatal) e tantos outros. Emocionante!

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Que bom que quis comentar. Pode esperar que logo respondo. Obrigadinha.