segunda-feira, 5 de março de 2012

Batendo orelhas



 
Do dia da serpente, sobrei. Os outros, mãe e ninhada, se foram em naturalidade. O que não se alimenta, alimento será. Lei do universo.


Não remoí cobras nem lagartos pela sorte de estar distante do ataque do bicho rastejante. Até porque qualquer experiência, latir, ou ganir, me era desconhecida.


Recém-nascido, guardo o registro do ir e vir: chinelinhos rasteiros. Em ondas, as conchas auditivas reconheciam o sobreviver se aproximando.


A salvadora atentando me encontrou e cuidou até o dia de se ir, sorrindo. Vestia o que chamava “noiva”, numa mão trazia flores e pela outra era levada. Não olhou para trás conduzida em tamanha certeza e felicidade.


Meu rabo, descompreendedor de ausência prolongada, enfiou-se entre, e não bastasse sob, minhas patas traseiras num encolher de fazer dó às araras, que até então não me haviam dado a mínima. Pelo contrário, bastava uns muitos metros de proximidade para que elas em seus “ara, ora pois!”, se afastassem: “ara, ora...ora!”, ventilando azuis “flap, flaps, ora tibe!”.


A branca alegria partiu. Estas pernas curtas e o dorso rente e paralelo ao chão perderam o belo tom ferrugem raposa, acinzentando mesmo as orelhas e a ponta alva do focinho encolhido na acridade do não tugir nem mugir.

 
Andava à roda desta cauda desaprendida do tradicional abanar; ingrato ao espaço de sempre. As nuvens precipitavam meu olhar redondo, agora líquido e vermelho. A ausência do farto e rodado farfalhar da chita florida criava o sem lugar. Eu, num habitar desabituado do habitual.


Se por um lado da terra o círculo amarelo descia, por outro o aro branco, minguando, subia acabrunhado até as orelhas do meu tanto gemer:

- Caí, caiiin.

Até que alguém gritou contentamento:

- Hei, lá!


Aurora, desenhou-se lunar, marido e cavalgadura, contra o horizonte:

- Vem Nem, vem lindo!

- Ora sus!, peroraram as araras.


Orelhei na hora!:

- Vou, vouuu iindo, lati!


Duas horas e meia, dando nos cascos na fresca da noite. Fuço, marco o destino certo nas retas das aroeiras, dos buritis, nas curvas dos cedros e paus-d’alho urinados na alegria de reencontro.

 
Os maturados cajás, caídos, danificam a pele amarela e sensível. Fermentam ao ar em tais agridoçuras que só os beijos de Aurora no Outrora.


Na Chácara Agora, a placa: Amâncio Ciro e Aurora.

- Vem Nem, entra lindo.


- Vouuu vindo, digo latindo!


Na distância a necessidade de ir e vir vira rotina. No princípio, na falta do arroz, antes de Amâncio voltar à cidade, Aurora chamava amarrando em mim um papelucho rabiscado:

- Vai Nem, no Sítio Outrora!


Na seca eu ia. E, na carroça com o velho, trazia, orgulhoso, para Agora, a necessidade de Aurora, sem erro.


Nas águas, no calor, lasco-me ao deitar lampeiro na enlameada umidade pantaneira. Que refresco; as poças lambem meu suor e o papel se desmancha em tintas de escrevinhar.
Dobro meu ir e vir na carência da despensa. Outrora, vou com o papel. Agora, venho sem haveres...


- Toca a voltar, Nem!, intui ela pondo garrafinha na coleira, feito recado náufrago. Desde então, eu, maré de ondear recados para víveres, ao ouvir o tinir de latas de mantimento vazias sento e aguardo: garatuja, garrafinha, veredas!

- Vai Nem, vai!


- Vouuuu!, orelha em pé, desvio das cobras, ludibrio onças e nado se a poça é profunda.


O último recado, levei célere:

- Corre, Nem, coooorriii-ih!


Gania ela? Nem respondi, saquei orelha!


Na volta? Veio a parteira.


Depois de cada boa lambida minha Rosicler sorri, esperneia, e patinha nos almofadados retalhos de boa chita azul. Completos, porque agora somos mãe e ninhada, até as orelhas.

 
 
• Publicado no jornal Folha da Região, em 04 março de 2012, coluna Porta-retratos.

7 comentários:

  1. Neste Dia 08 de Março façamos uma reflexão a cerca de tantas conquistas que se deram ao longo da História!!! Parabéns!!! Bjs
    http://www.luceliamuniz.blogspot.com/

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  2. Se bem que ainda falta muito por que lutar, me atenho a uma conquista nascida com um lema que era: liberte, fraternite , igualite.
    Assim: Formez vos batailons, marchons, marchons, aux armes,citoyens...só falar nao leva a nada.

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  3. Caro Hamilton, será o meu blog que troca as respostas das respectivas páginas?Enfom, cada um com as suas armas, a minha é a pena. Que pena!

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  4. Ah! entendi....acabei comentando mais ao comentário da Lucélia. Perdão pela inadequação do lugar onde o fiz. Quanto às armas, parabenizo-a pela que usa. Mas sabe, tenho setenta anos , três netos e sou pragmatico : a continuar assim, dentro deste clima de impunidade, meus netos e bisnetos não terão pena para usá-las. Parafraseando-a, digo: que pena!

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    1. A nossa sorte é que o mundo sempre se reinventa quando a ganância sobe ao poder. Qto à inadequação, caro, minha página é sua, vc decide onde a luz da tela iluminará o seu dígito! A falha foi minha, que não percebi que comentava o dito de Lucélia. Abraço

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  5. Quanta sentimentalidade entre agridoces na umidade pantaneira. Adorei, Cecília.

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    1. O Brasil tem cantos e encantos incontáveis. Talvez por isso o ambientar. Feliz aqui com suas leituras! Abraço.

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Que bom que quis comentar. Pode esperar que logo respondo. Obrigadinha.