domingo, 27 de maio de 2012

Cândida e Carmesina


 
Nasceram. Carmesina, no corredor, bochechas vermelhas como corada por alguma culpa ancestral, ou futura; Cândida, já dentro da sala de parto, olhos rasos d’água, face suave e translúcida.


E pensar que cada passo dado desde muito antes de seus nascimentos foi o que as trouxe para exatamente essa existência...


Nelas, anos depois, ao mesmo tempo, ajustaram o corpete todo branco. Numa sala Cândida, na sala ao lado Carmesina, cada qual sendo abotoada no seu vestido rebordado e apedregulhado como se sob a chuva rebrilhassem pequenos e iridescentes granizos. As dezenas de botõezinhos, que vão sendo fechados, inevitavelmente aproxima a hora do altar. A soma de escolhas específicas veio conduzindo cada qual por sua vez àquele dia.


Haveria caminhos sem volta, tristezas em que arrependimentos não caberiam, e alegrias cujo peito apertado na roupagem de gala feminina mal poderia conter. Por ora, esse entendimento ia transbordando do olhar por sobre a face em pequenas luminosidades gêmeas dos cristais que cobriam os véus que nelas seriam acrescentados.


Gêmeas casando-se com gêmeos vestiam-se, para a mesma ocasião, sob véus representativos da pureza, mas que como quaisquer cortinas são névoas a impedir certezas sobre o futuro. Futuro que dependerá menos da consciência e mais da inteligência do agir, ou pode ser desejado, intuído, predeterminado?


Cada qual, em seu universo, a certa altura da vida decide-se a auxiliar um volume de pessoas que ao acaso lhes cruza o caminho, dado que se sentem abençoadas e sobejando.


Cândida, na direção, ao farol, diz ao rapaz que esmolava: “Se quiser serviço posso pagar por isso”; Carmesina, ao lado, indignada saca da bolsa centavos: “Quanto lhe custa? É só dar algumas moedinhas!”.


Assim, eventualmente discordando dos métodos seguem a vida, sempre amigas, sempre irmãs.


Os anos passam e felicidades e tristezas surgem e se vão. Ambas gerando boas famílias são amadas, bem vistas e queridas por todos com quem convivem. Por coincidência falecem na mesma data e, lado a lado, são abotoadas pela derradeira vez e veladas em salas contíguas no morgue da cidade de bom porte.


A velar Carmesina a própria família e amigos da sociedade. A velar Cândida também a família, a sociedade e pessoas que nem todos sabem dizer quem são. Ao longo de todo o dia postam-se ao lado de Cândida pequenos grupos: pai mãe e filho, ou filhos. São famílias que, completamente contritas, afligem-se em futuras pressentidas saudades e gestos de profunda gratidão.


Se companheiros de sociedade pouco sabem, um jornalista está ali para tentar escrever sobre Cândida. Veio a pedido de um dos presentes, dono de uma grande indústria de reciclagem.




Ninguém sabe que ele nasceu, e teve seu primeiro pequeno negócio, por ali. Postado sob a mais bela coroa, que em centenas de flores adorna todos os tons do reconhecimento, mas também cercada em louros, o pensamento do industrial pode ser lido na faixa em letras douradas: “Se a minha vida floresceu, os louros são seus Cândida. Logo também eu estarei com Deus”.


Se há ali gente para estranhar e maldizer à boca pequena a frase que homenageia a falecida, há o profissional da comunicação que, vendo mais uma família que a maioria estranha, aproxima-se deles à saída e anota fatos de mais uma história que o jeito de ser de Cândida produziu: “Eu? Pedia esmola num farol. Dona Cândida me perguntou se eu queria trabalho. Ofereceu serviços variados e eu aceitei podar um gramado. Ela então me conseguiu outro trabalho, e outro.

Providenciou um curso de jardinagem. Aceitei. O resto? Está aqui.”, diz o rapaz apontando orgulhoso para a bonita esposa e filhos impecáveis em seus uniformes da melhor escola da cidade que, depois de renderem a última homenagem à Cândida, partiriam no branco e reluzente veículo utilitário em que se lia: João do Farol, jardinagem e paisagismo.

 
Com o cartão de João na mão, para uma entrevista mais aprofundada, o escritor segue pensando em como convencer a família de Cândida a tornar públicas tais histórias que a ligam a tanta gente que venceu.


Na rua, em meio a anotações mais do que suficientes para construir uma bela biografia, o jornalista passa sem notar os mendigos diante da porta de saída da sala em que Carmesina é velada.

Os pedintes de sempre, com seus filhos maltrapilhos esfaimados e remelentos a pingar suas lágrimas de maus tratos, aguardam; choram menos a perda de sua benfeitora e mais esperam o auxílio de alguma bolsa (que certamente alguma alma caridosa qualquer acabará dando) para a pinga e o pão.




 
Curiosidades:
 
• Crônica de Cecília Ferreira publicada no jornal Folha da Região, em 27/05/12, coluna Porta-retratos.

5 comentários:

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    1. J. Hamilton, minhas certezas as vezes são meu pão, outras a minha pinga... Essa dor, dói, mas dá samba! risos**

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  2. Fernando, que bom receber sua leitura e reconhecimento. Obrigadinha.

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  3. Aqui estou maravilhado, relendo a trajetória de Cândida e Carmesina...

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    1. Saber que podemos despertar releituras é mais do que combustível, é sensação de contribuir e poder se útil. Obrigada,amigo Antenor.

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Que bom que quis comentar. Pode esperar que logo respondo. Obrigadinha.