domingo, 15 de abril de 2012

ALUNA da MEXERICA




Agora Anya chorava. Escadarias se lavam para desimpedir caminhos, e o alívio vem. É sempre assim, toda lágrima fortalece, feito troca justa: diamantes da gota salgada por novas sabedorias.


​Qualquer caçula sabe: ser a menor, num lar de muitos irmãos homens, não é serviço que se faça a uma pobre criança. Mas nem tudo é evitável.


Na memória os irmãos questionam: O que quer ser quando, e se, crescer?


Nossa!, posso decidir isso sozinha?, perguntou-se interiormente.


Tendo acabado de descobrir na televisão que qualquer miss era a melhor e mais bonita mulher do mundo, não teve dúvida: Vou ser Miss, disse mexendo nos seus pequenos berloques e balangandãs! Os irmãos gargalhando a nomearam: É, uma Miss tão feia que vai ser eleita a “miss conde”! Me esconde, entendeu? Hahaha. É isso o que vai pedir quando crescer: por favor, me esconde! De tão feia! Hahaha! Ou vai ser a “miss xuruca”! Mixuruca! Haha! Não, se ela é uma mexeriqueira que vive resmungando: Mamãe, olha eles!, ela só pode ser a “miss xerica”! Mexeriqueira, mexeriqueira!

Ok. Era tempo em que o bulliyng não existia oficialmente. Então não tinha do que, ou para quem se queixar. Ia chorar no quarto. Ao menos isso! Sendo a única mulher, o refúgio era só seu! Trancava a porta e pronto! No mais, crescia colecionando lições: homens não querem saber de sonhos, o que dói em mim não devo fazer aos outros, etc. Mas enfim, era só uma criança, errava e aprendia, e os irmãos talvez aprendessem também. Ou não! Pensava ela com tristeza a cada vez que servia para nova diversão.


Ao chegar da escola, sobre a cama lá estava a caixa lacrada; presente da Rachel!, gritou-lhe, da cozinha, a mãe (que era sua, como era mãe de santo).


Fechou-se no quarto. Foi o olor do abrir da caixa que a prima mais querida mandou entregar-lhe que a fez lembrar-se dessas histórias de mexerica. Os frutos, enredados um a um como joias fossem, desprendiam brilhos olho-de-tigre ao abrir da tampa do grosso papelão. O odor cítrico que as continha, escancarava também a ponta de um envelope cujo perfume mais doce e espesso falava de amor mesmo antes de ser lido. Amarelado vivamente, entre os caldos que as tangerinas desprendiam, o papel não vinha endereçado, mas tinha destino certo. A menina compreendeu para quem deveria ser entregue.

No momento chorava. Se nem toda lembrança do passado era boa, algumas eram aprendizado. Naquele dia da infância a mãe de Anya entrou esfuziante enquanto a menina lia no seu canto particular a salvo dos irmãos impossíveis. Mesmo com a porta fechada, ouviu-a: Oba, criançada! Quem comeu mexerica? A alegria nas palmas e na voz da mãe era tanta que mesmo sem ter comido as tais tangerinas saiu do quarto, às tontas, gritando: Eu! Eu comi!


Não tinha nem visto as frutas, mas sabia: se os irmãos as acharam não haveria sobras! E se além de não as ter provado ficasse de fora da tal premiação? Eu!, Eu!, repetiu sorrindo para a mãe. Os irmãos silenciosos, surpreendentemente alheios a tanto contentamento, liam suas revistinhas pelos sofá, tapete e poltronas da sala. Só então Anya notou: esparramadas para todo lado, cascas alaranjadas e sumarentas decoravam os cômodos e o jardim da casa como se estes fossem lixeiras.


Tarde arrependeu-se na garganta ao segurar o último “fui eu”. Oba! Então pode começar a catar!, desfechou a mãe sem perceber o castigo infundado, ou o que se desenhava detrás das páginas dos gibis nos risinhos maliciosos dos filhos.


A noção do que é ou não justo e humilhante percebida pela garota, veio acompanhada da descoberta de que mentir não é interessante.


Assim aprendeu a força para aceitar injustiças, para superar-se, como para o encontro do verdadeiro prazer que é o trabalho. Afinal, a casa ficou linda e limpa porque Anya existe. Teve pena dos homens, alguns talvez para sempre dependentes de alguém a purificar-lhes o caminho.


Rachel voltou-lhe à mente. E, em nome daquele amor impossível, Anya ia trocando de roupa para levar às escondidas a carta da prima, filha de pai judeu, ao namorado descendente dos devotos de Alá.


Sob soluços sentia muito por algo que lhe parecia verdadeiramente incompreensível, algo que nem a vida e nem as artes dos irmãos explicaram devidamente: se Deus é puro amor, se todos afirmam que Ele é único e verdadeiro, como em nome d’Ele pessoas se afastam de encontro ao ódio?
Enxugando o choro antes de sair Anya descasca o fruto, joga o resíduo no lixinho devido, e parte para a sua missão de união. Olhos secos e vidrados, vai mascando lentamente o gomo dourado, no apreender, procura entre o doce e o azedo aquilo que a fruta ainda não lhe ensinou sobre os homens.



Curiosidades:
* Publicado na Folha da Região, Caderno Vida, em 15/04/12
 
 
 

5 comentários:

  1. Fui longe agora...vou te contar um segredinho bobo que guardo no meu coração só poucas pessoas sabem: quando criança fui "Miss Formiguinha" (sou de Formiga - MG kkkkkkkkkk). E cresci com um encantamento pelos concursos de Miss. Adorava organizar concursos na minha rua, fazia o cetro, a capa, a faixa...kkk e enquanto os "desfiles" aconteciam no quintal, meu irmão ficava no muro gritando :"E agora: Misssssss jona...Miss quenta..." Eu chorava e odiava isso. Num certo dia ele levou uns tapas do meu pai, que amava me ver inventando moda. rsrs Doces e caras lembranças...Obrigada por isso! Beijos, sua linda.

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  2. Que bom que se identifica, Miss Formiguinha! (adorei). Bjnhs

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  3. Na verdade eu queria que fosse uma caixa de damascos, pra mwlhor simbolizar Irã e Israel... Mas faltaram-me alegorias com damascos. E a Miss xirica se fez presente! risos***

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  4. Com damascos ou mexiricas ou mixiricas gostei do texto assim que o li na Foia. Congratulations...

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Que bom que quis comentar. Pode esperar que logo respondo. Obrigadinha.