domingo, 20 de novembro de 2011

SOBREVIVÊNCIAS


O homem nasce. Se tudo der certo vive. Principia a vida dependente de outro ser humano; idealmente de dois seres humanos, que a sociedade evoluída convencionou chamar pai e mãe.


Um dia o homem, pela independência que fatalmente virá, descobre que vive. Aprende que a humanidade está com os pés sobre a terra há anos, que os homens chegam e partem, que alguns deles pressupõem a existência de uma outra vida, ou não. Avalia que para crer é preciso fé; porque não há quem torne o outro lado palpável, ou o explique com todas as letras. Se for culto e um bom leitor ficará sabendo que a ciência, a filosofia, e a religião não têm explicações factuais para a maioria das questões existenciais e que a mais crucial, entre elas, tem se mantido inexplicada: existimos por quê?







Mas, se não resolve essas grandes questões, reconhece a condição básica da passagem pela terra: sobreviver.








A sobrevivência perfaz um mesmo ciclo para todos os seres vivos: gastar energia a cada ciclo solar encontrando uma forma de renovar essa mesma particular fonte, descansar para armazená-la, e voltar a gastá-la e reavê-la para mais vinte e quatro horas. Isso é tudo o que sabemos. Enquanto a ciência segue afirmando algumas coisas que não pode provar, como a inexistência de Um Criador Onipotente, os filósofos seguem buscando origens e finalidades por detrás da noção básica de sobrevivência, como se ela nada explicasse e não devesse nos bastar.


Essa procura acontece porque filósofos ao deparar homens na insistência de alcançar mais do que o necessário para subsistir (sem se importar se o outro, ao seu lado, está morrendo de fome) consideram, modernamente, que o homem está buscando a felicidade. Confundem-na, dependendo da época histórica, com busca moral, ética, com a conquista do dinheiro, da posse, do poder...
Mas, assim como sobrevivência se alcança todos os dias (porque para isso fomos programados), felicidade eterna terrena jamais será encontrada, porque ela se embute na própria sobrevivência. E, como a existência animal prova, isso é algo a ser reconquistado ao longo de cada novo dia.


Tomemos os animais irracionais como exemplos. Eles não têm a menor noção do conceito de ética, moral, felicidade. Mas têm de posse. Posse de território de caça, posse de fêmea ou bando delas, posse de espaço que se lhes é comparável a lar, seja ninho, seja gruta, seja determinado espaço de solo, ou circunscrição de árvores. E por quê? Porque, atentos aos seus instintos naturais, poder para eles é apenas igual a sobreviver a cada dia e por mais tempo.


Um território, ou casa, bem protegido é lar; lar é segurança; segurança é sobrevivência. Um território bem delimitado é reserva de alimento; seja a ser caçado, ou a ser ruminado; alimentação é sobrevivência. Um território bem guardado é local de descanso para reaver energias, e isso equivale a ter energias para caçar, ou ruminar, no dia de amanhã, o que representará mais um dia de sobrevivência.


De que nos valem cálculos que nos levam a fazer edificações incríveis; foguetes que nos passeiam pelo universo, que se tem comprovado infinito; computadores que nos contatam com o outro lado do globo em segundos, se não somos capazes de administrar a única superior diferença que poderíamos ter em relação aos animais?


A diferença entre o que nós sabemos e o que os animais sabem será ínfima se não formos capazes de nos preocupar com a sobrevivência de outro ser humano. E não falo de igualdade porque isso é desejar demais de nossa animalidade.


Por isso, a menos que os bens excedentes sejam “doados” publicamente (equivale a imposto), e respeitado pelos eleitos (equivale a “poder” público), para serem aplicados em prol da comunidade como um todo (equivale benfeitorias), nada nos separará dos animais irracionais, pois a nossa sobrevivência se dará exatamente como a deles: sem afeto, caridade, educação, ou inteligência.


* Crônica de Cecilia Ferreira publicada na coluna Tête-à-tête, Folha da Região, 20/11/2011

2 comentários:

Que bom que quis comentar. Pode esperar que logo respondo. Obrigadinha.