quinta-feira, 2 de junho de 2011

LAPIDAÇÃO E INVESTIGAÇÃO (em Machado de Assis)

Há cento e vinte anos Machado de Assis publicava, em folhetins, na Revista Brasileira, as Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Uma boa obra literária precisa ser compreendida facilmente, em sua história básica e central, pelo leitor comum. É assim que ganha as prateleiras. Mas o que diferencia a obra que é arte (seja escrita, pintada, esculpida, ou musicalmente construída) daquilo que nunca o foi, embora pareça, é algo que só aos iniciados, aos apaixonados, aos arrebatados pela possibilidade de criação e lapidação, é dado investigar.


E Machado é mestre.

Porque investigar é preciso, há que haver busca, como uma necessidade intrínseca, seja inserção seja extração, seja por parte do bom autor, ou do bom leitor.

Porque o autor, como um marqueteiro, tem que criar vontades, distribuir pequenos imãs atraentes, e deixar pistas. Despertar no leitor acurado o desejo. Descobrir! Que viagem poderia ser melhor do que essa?

Descobrir. Senão imediatamente, mediante pesquisa. Descortinar a origem de uma curiosidade, seja ela linguística, morfológica, semântica, sintática... E, porque depende de paixão, nem todos somos Hercule Poirot, Agatha Christie, Sherlock Holmes...


De certa forma é como fazer amor. Você traz, dentro de si, biologicamente, todos os ingredientes para cumprir a obrigação de procriar, mas pode decidir-se a não abrir mão da tranquilidade de ser solteiro. Criar família dá trabalho. Assim como a boa leitura dá trabalho.



Memórias Póstumas de Brás Cubas, todos sabem, inaugura o Realismo literário brasileiro, com novas experimentações: o narrador é anti-herói, falecido, digressivo, ácido, irônico, crítico e, por esses e outros ingredientes, é surpreendente e aderente a leitor desatento. Poderia dizer-se locomotiva, pois o romance chega a antecipar procedimentos modernistas psicanalíticos.

Ouve-se dizer que a obra não almeja moralizar. Eu, do baixo da minha compreensão, atrevo-me a discordar. Até porque Machado não está por aqui para dar razão a este ou aquele.

Se o texto esmiúça as mazelas do espírito humano nacional, embute a crítica ao que há de pior em nós. Isso, é claro, para o que quer enxergar.

Mas os ingredientes, para compreensão, estão todos lá. Diz-se também que Memórias Póstumas é marco da maturidade da literatura nacional. Antes fosse de toda obra alheia. Sim, é ultra maturidade de Machado e nosso passaporte de ingresso na literatura mundial.


O que aqui importa é que a forma de ver e sentir de cada personagem, as circunstâncias em que vivem, são fatores que vão enfatizar e demonstrar os problemas existenciais e as profundas contradições humanas. E o autor se encarrega de, tão escancarada quanto sutilmente, nos demonstrar chamando a atenção sobre tanto.

O exemplo concreto, Memórias Póstumas de Brás Cubas, capítulo LXVIII, O vergalho:


“Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto.”

No trecho citado, como no resto do romance, o risível é amargo. E a grande brincadeira de Machado, ali, começa pelo título escolhido para o capítulo.

A palavra “vergalho” é homônima, e dispõe de três significados distintos: um verbo e dois diferentes substantivos masculinos. Quando verbo tem o mesmo significado de “bater, surrar, chicotear”. Quando substantivo, tanto quer dizer “chicote” como também “velhaco, tratante, patife, ou o que manifesta ingenuidade, mas age com malícia”.

O episódio trata de um ex-negro alforriado, que agora é senhor de escravos, que longe de ser por isso compassivo e caridoso, desconta seus dias de agruras vingando-se em outro como ele: um fraco subjugado.

Resumindo a graça está não só na história, nem só na moral embutida, nem só no escancaramento das mazelas humanas, nem só na premonição da era de escreveres psicológicos que se avizinhava, mas no jogo de palavras
.



A grosso modo Machado brinca com o que pareceria, em primeira instância, não fazer sentido algum, não fossem as palavras, signos, que resultam em significados, significantes e significações: “Com vergalho o vergalho vergalhava”.


E, para saber se há ou não moral, se há ou não conflito, se é ou não instigante e divertido fazer essa análise, e outras que Machado imporá, de com qual vergalho o vergalho vergalhava a quem, só lendo. ou relendo a página, o capítulo, o livro!

Que viagem!

* A crônica,autoria de Cecilia Ferreira, foi publicada pelo jornal Folha da região em 22/07/2010

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Que bom que quis comentar. Pode esperar que logo respondo. Obrigadinha.