sexta-feira, 30 de março de 2012

Poemeto Tragicômico
































Olmo Gênio soube:
Anônimo, ao dar as caras,
sujeito anômalo e indômito,
lhe era homônimo.

Ainda Ortônimo,
antagônico, criou Pseudônimo;
Mas, qual!,
ânimo novo?, não sobreveio.

Atônito ante a existência
da aparentada presença,
revoltado em tanta homogenia,
tonto ao sentir-se sinônimo
escancarou hegemônica desavença:
- Vou mudar nome e ciência!

No cartório sugeriram-lhe Antônio,
mas o desaforo era pouco;
queria-se total antônimo!
Bateu no peito
e assim foi feito.

A tempo, e com jeito,
já não é Gênio,
muito menos Olmo,
o nosso Antônio Heterônimo;
até porque, sapiens e isonômico,
fez questão de manter-se a salvo,
único, e idôneo.




Cecilia Maria Vidigal Ferreira

quinta-feira, 29 de março de 2012

terça-feira, 20 de março de 2012

LÍNGUA



Deseja, a mim, sem julgar.

Definições dolorosas,
sorrisos entremeando
teu hálito
quente
no meu
são dedos na jugular.

E enquanto fincas,
faca afiada,
fonemas no cerne
me queres inerme?

E que eu, em teu jogo lasso,
participe, num abraço,
dessa farsa irreverente?

Ah, o verbo com que me feres!

Que queres, que eu seja rosa
ceifada – só gentilezas –
sem usar minhas defesas
contra o excesso de ousadia
e não crave meus espinhos
na reticente alegria
com que agrides a magia
da exatidão do meu ser?

Ousa vasos de cristal,
ou porcelana delgada,
até do louro metal,
água gelada e aspirina,
mergulhasses-me em benzina,
qual dor seria maior?

* Do livro VINHOS,em Cítricos (ed. Nankin)

domingo, 18 de março de 2012

EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO



Amanhece.

Na varanda envidraçada a entrevada senhora relê um trecho do livro Em Busca do Tempo Perdido:

“– A filha do Sr. Pupin? (...) você acha que eu não a conheceria?

– Mas não falo da mais velha, quero dizer a garota, a filha que está num pensionato em Jouy; parece-me que já a vi esta manhã.

– Ah, só se é isso – dizia a minha tia. – deve ter chegado para as Festas. É isso! (...) Mas então poderemos daqui a pouco ver a Sra. Sazerat bater à porta da irmã para almoçar. É isto! Vi o garoto do Galopin passar com um empadão! Você vai ver como era para a casa da Sra. Goupil...”

– Isso foi escrito antes de 1913, acredita? A vida era um ovo, todos se conheciam. Esmiuçar a existência alheia era o que se fazia, diz a senhorinha ignorando o chá e os remédios que a enfermeira oferece. Sabia que o romance de Proust foi recusado por quatro editores? E se não houvera sido publicado? Julgar é mesmo um pretensioso perigo... Em tempo de a obra sofrer biodegradares ao bel-prazer da umidade das eras, afirma a velha mesclando o português quase arcaico à intuição de uma provável futura conjugação ainda inexistente.

Não aceita a cadeira de rodas em que está sentada, como não quer ver o reflexo da exagerada plástica facial. O vasto espelho, na moldura rococó acordoada à parede, é a expressão do rico passado insistindo em revelar o obsoleto futuro que lhe chegou.

Em criança, menina-moça, ou mesmo mulher o porvir parecia só esperança e renovação.

– As janelas se abriam para o mundo! Resmunga, senil de raiva, diante do desacompanhar da acompanhante que indiferente insiste na xícara e nos comprimidos.

Para fora do amplo apartamento os olhos, vítreos, resvalam vãs engenharias. São paredões concretados e seus vedantes vidros espelhados, venezianas metálicas, janelões fixados em alumínios ligeiramente basculantes, ou suportes contidamente pivotantes – a base da descrição é o ecoar do zum-zum abafado e indistinguível descortinado nas ruas, mascarando vidas. Ocasos.

Para dentro o olhar, vívido, penetra chãs arquiteturas. São frágeis portões em gradis de ferro, altura máxima de oitenta centímetros, construções de tijolo e cimento embelezadas por pedras naturais com suas pequenas aberturas encaixilhadas em madeira correndo a envelopar frestas de tabuinhas móveis mal contendo vozes em suas privacidades de persianas – o auge da discrição é o engalanar-se sob o peso de aveludadas cortinas, escancarando vidas. Auroras.

Ao recordar a própria juventude a voz idosa emerge, juvenil e revoltada, como se estivesse no ano de 1959:

– Mamãe! A vizinha da frente passa o dia a espreitar se entramos, se saímos... Desconfio que cheire o ar para adivinhar o que comemos no almoço!Definitivamente ela não tem com o que se ocupar!

Um barulho a desperta do transe. A anciã move a cadeira motorizada para avistar a nora, chaves na mão, já dentro do hall. A neta ao sair do antigo elevador não dirige palavra ao outro passageiro, presença silenciosa que segue para o respectivo andar. A funcionária deixa a medicação e desaparece. A menina sem beijar a avó se joga sobre as muitas almofadas do sofá de seda adamascada e incansável aperta, com o dedo, um aparelhinho do tamanho de uma barra de chocolate de 35 gramas.

– Oi, vovó! Sabe a sua amiga que se mandou pro outro lado do mundo? Fuça na minha página todo dia. Curte até as fotos do que eu como!
Definitivamente ela não tem vida!

A fala da neta, beijo inesperado, fonte da juventude, ilumina esse admirável mundo novo. Subitamente remoçada a avó pergunta:

– Onde arranjo alguém que me ensine a mexer nesse tal de Facebook?

– O quê? Duvida a nora.

Mas a senhorinha não ouve. Só de imaginar o acesso à vida, desfruta a alegria dos neurônios correndo em busca do tempo perdido!




CURIOSIDADES:
• Publicado em 18 de março de 2012, Folha da Região, caderno Vida, coluna Porta-retratos.

HARU /PRIMAVERA (haikai)




Flor em botão,brinco
lilás, brinda o Manacá
alvo em fenecer.










Curiosidades:
* Entendendo o Hakai clássico (página com exemplos originais traduzidos):
http://www.kakinet.com/cms/

sábado, 17 de março de 2012

AKI / OUTONO (hakai)




Serenas mãos velam,


ao luar netos futuros


valsam sombreados.











Curiosidades:
* Entendendo o Hakai clássico (página com exemplos originais traduzidos):
http://www.kakinet.com/cms/

sexta-feira, 16 de março de 2012

BURROS N'ÁGUA

Quando o couro já
não é cabeludo
e os problemas,
antes inexistentes,
dão as caras,
não adianta lutar com unhas,
que de fortes estão fracas,
e dentes, que de afiados
podem desafiá-lo
e cair.

 
Por que não adianta?


É que
(diferente dos seus cabelos)
o calcanhar continua o mesmo!

É de aquiles.


(Nestes tempos de evolução cirurgica, capilar, plástica e odontológica, faltam-nos expressões idiomáticas que possibilitem a real construção da piada(?) acima descrita... Talvez hoje, ela nem exista. Desculpem!)

FUYU / INVERNO (hakai)




Pantanal. Solstício.
Relincha e cava o cavalo;
alegre é a seca.







Curiosidades:
* Entendendo o Hakai clássico (página com exemplos originais traduzidos):
http://www.kakinet.com/cms/

quinta-feira, 15 de março de 2012

NATSU / VERÃO (Haikai)




Sol. No solo a prata,
o caracol caminhando,
fia e desidrata.









Curiosidades:
* Entendendo o Hakai clássico (página com exemplos originais traduzidos):
http://www.kakinet.com/cms/

quarta-feira, 14 de março de 2012

O POETA E A NAVALHA

e ela interfere
na morte e na vida
do alvo-opção

(a prata rebrilha
na mão do poeta)

é ela quem corta,
ferindo a ferida
entende que afaga
a presa dorida,
destila veneno,
fornece guarida,
os males apaga,
da alma sofrida
penetra no seio,
àquele que abriga
confrange, ou conforta

(na mão do poeta
cintila o metal)

é pena que aporta e estanca
sanguíneas chagas de amores
e afoga cantando
a quem se quer mal


(a lua, cingindo,
reflete o objeto)

CURIOSIDADES:

* Poema do livro Instantâneos (em: insurreição) - ed. Massao Ohno

domingo, 11 de março de 2012

BODAS DE NÃO PARTA



Há vinte e cinco anos não te vejo

e, no entanto, o teu beijo permanece

ardendo encantos nesta face.


Não é fácil seguir em frente

sem ter a quem exibir gracinhas

e, se há muito passei da idade,

sei repeti-las, a inebriar-te,
 
ainda tão minhas.


Entendendo que pirulitos
 
não sabem ao reconhecível regaço,

insistindo admito:

o teu beijo doce me alicia
 
feito colo no palito.


E, nas cores, minha mãe,

do teu esforço por minhas curas,

sigo adiante como quererias.


Feita num tempo que era o teu
 
fui aprendiz da alegria

de saber-te a um toque de mãos,
 
telefones e campainhas tão certas,

que estes braços,

do teu terno abraço jamais desertos,

pensando-te terrenamente eterna,

entendem-te constante.


Assim a prata,

que na memória neva,

em assaltos de saudade comemora
 
o seguirmos construindo,

a despeito das vidas idas,

a nossa imprevisível enleada história



Cecilia Ferreira
 

quarta-feira, 7 de março de 2012

Destituíveis


O perigo não está nas doutrinas que se afirmam democráticas, mas nos homens que as lancetam e esvaziam de sentido.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Batendo orelhas



 
Do dia da serpente, sobrei. Os outros, mãe e ninhada, se foram em naturalidade. O que não se alimenta, alimento será. Lei do universo.


Não remoí cobras nem lagartos pela sorte de estar distante do ataque do bicho rastejante. Até porque qualquer experiência, latir, ou ganir, me era desconhecida.


Recém-nascido, guardo o registro do ir e vir: chinelinhos rasteiros. Em ondas, as conchas auditivas reconheciam o sobreviver se aproximando.


A salvadora atentando me encontrou e cuidou até o dia de se ir, sorrindo. Vestia o que chamava “noiva”, numa mão trazia flores e pela outra era levada. Não olhou para trás conduzida em tamanha certeza e felicidade.


Meu rabo, descompreendedor de ausência prolongada, enfiou-se entre, e não bastasse sob, minhas patas traseiras num encolher de fazer dó às araras, que até então não me haviam dado a mínima. Pelo contrário, bastava uns muitos metros de proximidade para que elas em seus “ara, ora pois!”, se afastassem: “ara, ora...ora!”, ventilando azuis “flap, flaps, ora tibe!”.


A branca alegria partiu. Estas pernas curtas e o dorso rente e paralelo ao chão perderam o belo tom ferrugem raposa, acinzentando mesmo as orelhas e a ponta alva do focinho encolhido na acridade do não tugir nem mugir.

 
Andava à roda desta cauda desaprendida do tradicional abanar; ingrato ao espaço de sempre. As nuvens precipitavam meu olhar redondo, agora líquido e vermelho. A ausência do farto e rodado farfalhar da chita florida criava o sem lugar. Eu, num habitar desabituado do habitual.


Se por um lado da terra o círculo amarelo descia, por outro o aro branco, minguando, subia acabrunhado até as orelhas do meu tanto gemer:

- Caí, caiiin.

Até que alguém gritou contentamento:

- Hei, lá!


Aurora, desenhou-se lunar, marido e cavalgadura, contra o horizonte:

- Vem Nem, vem lindo!

- Ora sus!, peroraram as araras.


Orelhei na hora!:

- Vou, vouuu iindo, lati!


Duas horas e meia, dando nos cascos na fresca da noite. Fuço, marco o destino certo nas retas das aroeiras, dos buritis, nas curvas dos cedros e paus-d’alho urinados na alegria de reencontro.

 
Os maturados cajás, caídos, danificam a pele amarela e sensível. Fermentam ao ar em tais agridoçuras que só os beijos de Aurora no Outrora.


Na Chácara Agora, a placa: Amâncio Ciro e Aurora.

- Vem Nem, entra lindo.


- Vouuu vindo, digo latindo!


Na distância a necessidade de ir e vir vira rotina. No princípio, na falta do arroz, antes de Amâncio voltar à cidade, Aurora chamava amarrando em mim um papelucho rabiscado:

- Vai Nem, no Sítio Outrora!


Na seca eu ia. E, na carroça com o velho, trazia, orgulhoso, para Agora, a necessidade de Aurora, sem erro.


Nas águas, no calor, lasco-me ao deitar lampeiro na enlameada umidade pantaneira. Que refresco; as poças lambem meu suor e o papel se desmancha em tintas de escrevinhar.
Dobro meu ir e vir na carência da despensa. Outrora, vou com o papel. Agora, venho sem haveres...


- Toca a voltar, Nem!, intui ela pondo garrafinha na coleira, feito recado náufrago. Desde então, eu, maré de ondear recados para víveres, ao ouvir o tinir de latas de mantimento vazias sento e aguardo: garatuja, garrafinha, veredas!

- Vai Nem, vai!


- Vouuuu!, orelha em pé, desvio das cobras, ludibrio onças e nado se a poça é profunda.


O último recado, levei célere:

- Corre, Nem, coooorriii-ih!


Gania ela? Nem respondi, saquei orelha!


Na volta? Veio a parteira.


Depois de cada boa lambida minha Rosicler sorri, esperneia, e patinha nos almofadados retalhos de boa chita azul. Completos, porque agora somos mãe e ninhada, até as orelhas.

 
 
• Publicado no jornal Folha da Região, em 04 março de 2012, coluna Porta-retratos.

PROFECIA










E precisavas levar tão a sério
a série de impropérios, dardejantes,
que eu lançava,
abrasada por tua imensa culpa?

“Não foi nada!”,
me dizias,
mas era tua a mão que estava fria,
pálida de falsidade,
e plena de fantasias
vividas em outra pele
(de obcecada Sibilia)
nauseada na visão.

“E por que te arrepias?”, perguntavas,
certo do teu poder do teu fascínio;
e mais me exasperava a tua não
sensibilidade à minha agonia
que o fantasma da outra (seduzida
em meu espaço – esse!
dos teus braços)
farto em ousar pernoites, moradia.

Recomposta pela imensa saudade,
“Não foi nada”, digo-te eu.
serei tua profetisa,
serás o meu filisteu.

Curiosidades
• Poema do livro Vinhos; em Amaros.
• Cecilia Ferreira