quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

ADVERSIDADE





















Dez mil pés
e eu saltando
de cabeça.

Vamos logo, me ensandeça
você que sabe inventar.

Criador de tantos tipos,
projéteis e artifícios.

Quem nos sons do eco traça
a forma de me alcançar,
qual é mesmo o seu ofício,
navegador de qual mar
a programar seu torpedo
para atingir o meu medo
e de mim me desarmar?

(dez mil pés e eu saltando...)

E ainda que eu saiba de cor
suas falas e trejeitos,
seus doídos desacertos,
e a forma incoerente
de você argumentar,
aceito o louco mergulho.

Só você me quis assim
(dez mil, pés e eu saltando...)
para o seu e o meu azar.

* Poema do livro Vinhos.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Desculpando



Se você não pode evitar causar decepções a si próprio, imagine o que sobra para os outros!

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Pintura Surreal




Sou escrava do desejo,
feitor desta ansiedade!
E no beijo que neguei,
nos carinhos que não fiz,
insana e cativa,
perdi
a minha sobriedade.

Despida
das vestes serenas
do meu ameno sossego,
eu, de segura e tranquila,
hoje só tenho equilíbrio
nas ondas,
no frio,
no brilho
desse cristal que hoje envolve
o meu vulto aprisionado
nessa taça de tequila.

Reprodução distorcida,
a cópia em sombras de mim
dança um bolero... Ravel?

Retorço-me na loucura
dos sons em meu coração.
Retumbam tambores,
trompetes,
pistons.
Sou contornos. E os relevos,
gritantes, suprarreais,
se agitam, assim, sem mais,
sobre um fundo em tom pastel.

Atada ao grilhão
das sombras da noite
em que eu não o quis,
a sua zumbi
almeja os açoites.
Talvez os vergões,
as chagas,
feridas,
que venha a criar
no dorso
dorido,
motivem em mim
o abrolhar das asas,
e salvem
a tempo
esta colibri.

Curiosidades:
• Do livro Vinhos, de Cecilia Ferreira em: Mélicos

Independência e corte


Minha palavra não nasce da beleza, antes persegue a revolta; não surge da curiosidade, brota paulatina da procura decidida; não se constrói no coração, é dura consequência do batimento deste e não se importa o quanto eu a queira mágica, poética, delicada, suave. Minha palavra, corte afiado, criança teimosa e decidida, não me compreende.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

FÉ, FITA VERMELHA e CARNAVAL?

O brasileiro tende a ser sincrético, ou seja, une doutrinas.

Incompatbilidade? Quem liga pra isso? Despir um santo? Melhor vestir todos! O famoso jeitinho quer tudo num só altar, e boa!




No carnaval se a consciência pesa é só apelar: bater na madeira, ajoelhar diante do santo e do orixá, tascar patuás no pescoço e fita vermelha no pulso, jogar sal grosso em 4 cantos... Isso não é novidade.


O novo fica por conta da descoberta de que na internet páginas de ateus não discutem ciências, filosofia, ou política; o negócio é criticar religiões.





Por quê? Difícil saber... Os participantes teriam sido humilhados pela crença de alguém? Ou são descrentes por não saber como ativar a fé?

Afinal uma das mais antigas formas de aliviar o medo diante do desconhecido é a ofensa.

Nas tais páginas existe tanta dificuldade para entender que o livre-arbítrio deve ser respeitado como para entender que religião e fé são coisas diferentes.


A capacidade de Crer é um mecanismo da Criação que permite ativar a “partícula de reserva”, ação cientificamente estudada, que conduz ao equilíbrio e bem-estar.

Para os crentes a fé é a ação da mão de Deus, e para alguns ateus a fé é uma falsa “caixa de Pandora” em que tolos acreditam.

A ciência ainda descobrirá que a diferença entre crentes e ateus é que uns desenvolvem, e outros não, a capacidade de ativar o prodígio salvador da fé.





Já a religião é resultado da congregação humana em torno de princípios comuns.

Mas somos tão metafóricos e contraditórios que comunidades entendem as mesmas Palavras e regras de conduta de modos diferentes.

E assim, o que principia para ser refúgio e suporte emocional, finda por adquirir também força política e tendência a rivalizar.




Em círculo vicioso a religião fortalece aquele que faz uso constante da fé; e a fé, congregante por natureza, leva à religião cuja sobrevivência comunitária volta a depender da união pela Fé.

E a Razão nisso tudo?


A compatibilidade milagrosa entre Fé e Razão nasce quando juntas, conciliadas pelo cultivar metódico da oração, induzem à cura no mover montanhas de neurotransmissores, ativando sensações de alívio, prazer de viver e outros bons estados de espírito.


Se a fita vermelha num cão não ascende a fé, a cor, frequentemente associada à vitalidade, ambição, coragem, otimismo, mas também à raiva, irritação, morte e inconformismo, pode de fato atrair a visão e portanto a atenção.


É a disposição de a colocarmos como “proteção contra invejosos” que traduz seu mais óbvio significado: temos medo.






Sabemos que não se adoece por um olhar arrevesado, ou de cobiça; assim fosse os bonitos, ricos e famosos já nasceriam com o pé dentro da cova.









Em compensação o uso da fita vermelha traz a garantia da atenção.

O autor exibe um claro significado: “temo, e esta fita está aí para que eu não me esqueça de cuidar do que considero precioso”.

Porque o pavor, racional ou irracional, tem em qualquer crendice o dom de ser lembrete.


Vamos combinar?

Fitas vermelhas enfeitam, como andores supersticiosos são belíssimos temas para nossos carnavais.

E para os milagres pessoais e curas dignas de testemunho sempre poderemos optar pelo exercício da fé interior constante.





Curiosidades:

* Publicado na Folha da Região em 19 de fevereiro de 2012, domingo de carnaval.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

sábado, 11 de fevereiro de 2012

DUBITAÇÃO



Ouça-me um pouco
– sei que é preciso –
quero que atento
na madrugada
sonhe meus sonhos
me tome o juízo.

Toque-me um pouco
– de leve apenas –
para que eu possa
saber o sabor.

Deixe o desejo
– não saciado –
que ora transpira
tão lentamente
transfigurar-se
descomedido
numa cascata
que salta no abismo.

Sopre-me então
qualquer coisa ao ouvido
– que envolva mistério –
e oculte consigo
as doces mentiras,
as cruéis verdades.

Deixe que a frase,
incerta, me invada
criando charadas
de duplo sentido.


Cecilia Ferreira

Curiosidades

* Do livro Instantâneos; em Redenção.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Abdicante amor

E caiu nas mãos dos salteadores, os quais o despojaram (...) deixando-o meio morto (...) um samaritano que ia de viagem chegou ao pé dele, e vendo-o, moveu-se de íntima compaixão (...) atou-lhe as feridas, aplicando-lhe azeite e vinho (...) levou-o para uma estalagem e cuidou dele (Lc 10. 30-34)

A vontade de abrir mão de pessoais desejos é suplantada se nos vemos centro de nós mesmos. E Deus ama e perdoa. Sempre. Ansiamos por esse amor universal, o amor pregado por Cristo, e, no entanto, nossa própria humanidade impede. Mas a falha forma de ser não abranda o admirar quem manifeste esse abdicante amor.

Interessante como declarar amor pode ser variadíssimo, matizado mesmo. Algumas formas, simples, surpreendem e encantam. O advogado, professor e articulista deste jornal Jorge Napoleão Xavier extravasa seu amor via arquivo memorial. Não lhe basta lembrar todos os que lhe cruzaram caminhos, nem descrever vidas, negócios, parentelas, amizades, enleios sociais. Napo, como é conhecido pelos que o querem bem, o faz com amor saudoso e gentil, registrando sutilezas generosas a cada retrato.

Clarice Lispector (escritora já falecida) cantava-se canhestra no amor, pois ao amar feria e arranhava. O Dr. Pagura, em São Paulo, em ousada cirurgia, salvou a vida do grande comentarista Osmar Prado. O método usado foi a raspagem do tecido cerebral que estava morto, necrosado.

Do imprestável tecido brotou vida novamente. Há então uma certeza de que raspagens, arranhões e certas feridas são como varreduras de assoalhos e escovação de dentes: executa-se para um rebrilho, um renascimento.

Há bons samaritanos internacionalmente reconhecidos, como Gandhi e Martin Luter King. A abnegação pode ser pela palavra, corpo, ação. Muitos escolhem minorias esquecidas, e, alguns, nem sempre reconhecidos, são capazes de criar a própria família, e acolher pessoas desassistidas como se fossem família. Em Araçatuba, existe a Casa Bom Samaritano. Assunta, uma boa samaritana idealizadora e mantenedora do lar, conta com muitos outros altruístas ao longo de seu atender aos alcoólatras, andarilhos e demais ignorados sociais desprotegidos pelo poder público.

A casa, em que cuidando oferece o serviço de suas mãos, corpo e coração, é ação amorosa incondicional, inalcançável e admirável aos nossos olhos e apegos. Nem só abriga, nem só alimenta, veste e acode medicinalmente. O que a faz incomum é o raro dom de devolver-lhes a auto-estima, o apego à vida, e a esperança (sempre divina) no ser humano.

Folha da Região-20/06/2007